25.9.12

na abertura do ano do brasil em portugal, josé avillez faz as honras da casa e prepara dois jantares para mais tarde recordar com os irmãos castanho de belém do pará.

[Felipe, José e Thiago, no Belcanto (©jorge padeiro)]

Tendo em conta que os jantares de hoje (dia 25) e de amanhã (dia 26) estão já mais do que esgotados, o que vou fazer em seguida é quase uma maldade. Redimo-me, ou assim quero pensar, ao acrescentar duas coisas:
— A primeira é que a ocasião e os intervenientes merecem que se fale no assunto.
— A segunda é que ainda há esperança. Por conta das desistências de última hora, o Belcanto de José Avillez criou uma lista de espera.

Dito isto, e de consciência mais aliviada, passo, para quem anda distraído, a explicar do que se trata.

[Thiago e José na cozinha do Belcanto (©jorge padeiro)]

Até junho de 2013, Portugal e Brasil vão celebrar-se mutuamente através de uma programação cheia, de um lado e de outro do Atlântico. A gastronomia, óbvio, não poderia ter ficado de fora.

[Thiago, Felipe e José testam pratos na cozinha do Belcanto (©jorge padeiro)]

Resumindo, a ideia é que vários chefs brasileiros da primeira linha — e na calha estão já nomes como Roberta Sudbrack, do Rio de Janeiro, que entrou este ano para a lista dos 100 Melhores Restaurantes do Mundo segunda a revista britânica Restaurant, ou Beto Pimentel, do celebrado restaurante Paraiso Tropical de Salvador, na Bahia — sejam recebidos por colegas portugueses e, juntos, criem um menu de degustação a várias mãos para darem a conhecer o seu trabalho e provarem, também na cozinha, o entrosamento entre Portugal e Brasil.

[Belcanto (©nuno correia)]

Uma espécie de duetos improváveis que só mesmo acontecimentos especiais como este permitem que aconteça. Neste sentido, coube aos irmãos Castanho, de Belém do Pará, a honra de abrir o Festival Gastronómico, tendo por cicerone nada mais nada menos que José Avillez e o seu restaurante Belcanto, ao Chiado.

[Thiago e Felipe Castanho (©taiana laiun)]

Por mais de uma vez até escrevi sobre os Castanho, não só no blog mas igualmente numa entrevista recente que será publicada na edição de outubro da revista Volta ao Mundo (em breve nas bancas e e-paper), mas para situar acrescento apenas isto: a escolha não teve nada de aleatória. Thiago, o mais velho, e Felipe, o mais novo, ainda que na casa dos vinte e (muito poucos) anos, são já tidos como valores seguros da nova geração de chefs brasileiros que dá que falar dentro de portas e contribui para uma visibilidade nunca antes vista da gastronomia brasileira no exterior.

[Remanso do Bosque, o restaurante dos Castanho aberto em finais de 2011 em Belém do Pará)]

Instalados em Belém do Pará, na região amazónica, onde a família possui os restaurantes Remanso do Peixe (o pai, Francisco, começou o negócio numa sala da própria casa quando eles eram ainda crianças) e Remanso do Bosque (aberto em finais de 2011), os dois irmãos têm-se mostrados incansáveis na pesquisa de ingredientes e na recuperação do receituário local (para muitos cozinheiros, Belém, graças a mercados como Ver-o-Peso, é uma fonte quase inesgotável de inspiração, aprendizagem e abastecimento), provando que o potencial da cozinha não está apenas no futuro, mas também no passado.

[O amuse-bouche dos Castanho: tucupi, carimã, aviú e jambú (©jorge padeiro)]

Thiago está em Lisboa pela terceira vez desde que, há poucos anos, estagiou por seis meses com Vítor Sobral no extinto Terreiro do Paço. Para Felipe é a primeira vez, pelo que depois de uma passagem pela Cervejaria Ramiro — levados por Avillez, que já a tinha elegido para mostrar a Anthony Bourdain no No Reservations dedicado à capital—, espera ainda ter tempo, até quinta, para cumprir outros rituais como uma ida aos incontornáveis pastéis de Belém.

[A horta da galinha dos ovos de ouro de Avillez (©nuno correia)]

Detalhe curioso, mas não inédito, nem um nem outro conhecia Avillez pessoalmente, mas hoje as redes sociais tornaram tudo mais fáceis. Inclusive o intercâmbio e a troca de conhecimentos entre chefs.

[Cherne, leite de coco e dendê dos Castanho (©jorge padeiro)]

Esta parceria começou a tomar forma há coisa de dois meses, à distância e com várias viagens de uns e outros pelo meio — Thiago e Felipe vieram há pouco de um festival em Quito, Equador, e Avillez passou recentemente pelo País Basco, por São Paulo (onde lhe coube, juntamente com Luís Baena, mostrar a sua cozinha na abertura do Ano de Portugal no Brasil) e por Copenhaga, onde foi conhecer finalmente o Noma de René Redzepi, o melhor do mundo segundo a já citada revista Restaurant). 

[O bombom de cupuaçu dos Castanho (©jorge padeiro)]

Conhecidos por nunca viajarem sem os seus famosos "isopores" (geleiras em esferovite), os Castanho tentaram trazer à socapa o máximo de ingredientes de Belém para Lisboa — em hipótese alguma, confidenciaram-me divertidos, eles abrem mão do tucupi (caldo preparado a partir da raiz da mandioca brava), das farinhas, do jambú (por falar nesta flor, também conhecida por szechuan, que provoca uma certa dormência na boca, eles trouxeram na bagagem uma cachaça artesanal de jambú cujo segredo de fabrico nem mesmo eles conseguem deslindar) ou cumaru (vagem de polpa fibrosa) — mas um bom quinhão ficou retido na alfândega. Tiveram por isso de improvisar.

[Avillez na cozinha do Belcanto (©nuno correia)]

No caso de Avillez, que assume ter-se impressionado sobretudo com o tucupi ou com uso diferente que dão às farinhas, o desafio maior foi o de incluir no menu dos dois jantares alguns pratos que serve no Belcanto e que melhor se prestariam a esse diálogo entre culturas, sabores e texturas.

Já os Castanho, na falta dos peixes amazónicos de rio com que estão mais habituados a trabalhar, aceitaram a sugestão de Avillez para substituir numa dos pratos o filhote por cherne. E parece que deu certo.

Nos dias que antecederam os dois jantares no Belcanto, os Castanho e Avillez estiveram enfurnados na cozinha do restaurante a testar pratos e a harmonia entre os mesmos. Foi um processo interessante, e rico, que fê-los inclusive mudar de ideias e enveredar por outras soluções que no início nem sequer tinham cogitado. Mas essa é a beleza da coisa.


[Thiago, José e Felipe no Belcanto (©thiago castanho, todos os direitos reservados)]

A outra, sem dúvida, será a oportunidade de degustar, prato a prato, o que preparam para as duas noites. Ao contrário de outras cozinhas brasileiras, a paraense não é a que tem mais influências portuguesas, mas ela está lá, como me contou Thiago, em pormenores como as caldeiradas ou o hábito da salga dos peixes. 

Ao todo serão oito pratos. A saber: tucupi, carimã (farinha de mandioca), aviú (camarão pequeno de rio) e jambú, um amuse-bouche dos Castanho; chibé (farinha d'água, camarões secos, frescos), uma entrada dos Castanho; nhoque de banana terra, manteiga queimada e castanha do pará, outra entrada dos Castanho; a horta da galinha dos ovos de ouro, uma entrada já famosa de Avillez; cherne, leite de coco e dendê (óleo de palma), um prato dos Castanho; leitão revisitado, prato de Avillez; "Terra" e citrinos, uma pré-sobremesa dos Castanho; Bombom de cupuaçu (fruta amazónica), sorbet de chocolate da Amazónia, cupuaçu, toffee de cumaru, sobremesa dos Castanho.

[De Belém para Lisboa, a cachaça de jambú (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Como estarei na Colômbia por estes dias, não terei o prazer de ver como resultou, no todo, o menu desenhado a seis mãos, mas, para quem ainda tiver oportunidade (e sorte), parece-me ser coisa a não perder.


[Chocolate 100% cacau de Combu (©thiago castanho, todos os direitos reservados)]

Ficou-me o consolo de ter estado nos bastidores nas vésperas e, entre outras coisas, de me ter sido dado a provar a cachaça artesanal de que falei acima e algo que só tinha visto em fotos dos Castanho: o chocolate 100% cacau de Combu (Amazónia), também totalmente artesanal, que estes começaram a usar. De gosto muito intenso, mas de textura agradável e apresentação inusitada (vem embrulhado em folhas), ele será um dos ingredientes-chave de uma das sobremesas apresentadas.

E que venham mais cinco.

19.9.12

qosqo, que é como quem diz cusco alfacinha

[O ceviche clássico de corvina (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Nunca o Peru esteve tão perto. E não há nada que enganar. A meio caminho entre a Praça do Comércio e a Casa dos Bicos, na castiça e bairrista rua dos Bacalhoeiros (quase, quase encostado à rua Padaria), assentou arraiais o Qosqo.

[À entrada, menu do dia a 13 euros (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

O nome (Qosqo, que é como quem diz Cusco em quechua) não condiz com a enorme gravura que enche toda uma parede, e que retrata Machu Picchu e não Cuzco, mas isso é um mero detalhe. 

[Machu Picchu, e não Cuzco, domina a pequena sala do Qosqo (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Para ser exato, o Qosqo começou a tomar forma num outro endereço alfacinha, o restaurante Isaura da avenida Paris, onde Gabriela e Vasco fizeram dos jantares de sexta uma iniciação aos sabores peruanos. A aceitação tem sido tão boa que, animados, trataram de se juntar a mais dois sócios – o peruano Marco Leya e o português José Araújo – para abrir a casa dos Bacalhoeiros. É uma casa pequenina e despretensiosa, onde não cabem mais de vinte pessoas sentadas (contei!), mas arejada, luminosa e folclórica q.b.

[Porventura, o detalhe mais conseguido da decoração (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

O espaço, sou sincero, não é o forte do Qosqo, mas depressa isso passa para segundo plano. Numa altura em que chefs como Gastón Acurio e Virgilio Martinez (em breve, contarei a minha passagem pelo novo Lima que abriu em Londres!) contribuem para colocar a gastronomia peruana nas alturas (ela é, a par da brasileira e da mexicana, uma das sensações mundiais do momento), a proposta do Qosqo é muito mais modesta; mas nem por isso de menosprezar. 

[Para começar uma Cusqueña e canchita (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Pelo contrário, embalados pelo portunhol do solícito empregado de mesa argentino e pela música de fundo andina, os nossos olhos fixam-se no menu escrito na ardósia por cima do balcão. Os menos afoitos podem sempre optar pelo menu do dia  — que sai por 13 euros com prato (chaufa de mariscos), bebida, sobremesa e café —, mas o meu conselho é que se lembre da velha máxima «quem não arrisca, não petisca». Nas bebidas, há sangria, imperial, mas também uma legítima cerveja peruana (a Cusqueña, uma Premium encorpada de pura cevada) e limonada (ao almoço dificilmente vai encontrar o famoso cocktail Pisco Sour). 

[As empanadas de carne de vaca (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Como aperitivo, a canchita (milho torrado, muito macio, que muitos descrevem acertadamente como uma pipoca que não estourou) faz as vezes dos nossos tremoços, ao passo que as empanadas de carne de vaca (no recheio vai também passas e a massa tem um polvilho doce que recebe bem a acidez de umas gotas de lima) são das entradas que mais saem.

[O ceviche mais em detalhe (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Nos pratos, há mais opções de frios do que quentes (por regra, só um, o que achei pouco), mas, na dúvida, escolha o ceviche da casa com corvina, camarões, rodelas de polvo e de lula marinados em sumo de lima, cebola roxa e picante. O camote, a batata doce laranja, dá uma textura extra muito bem-vinda ao prato, e quem quiser pode também acrescentar um pouco do milho torrado (este pequeno "truque" foi-me ensinado no restaurante londrino de Martinez, precisamente). 

[O arroz doce em versão peruana (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Para encerrar, a sobremesa da casa, que não gera unanimidades, é o arroz doce em versão peruana. Estive quase para passar, mas, a curiosidade falou mais alto. A verdade é que a dita, que leva também passas e uma espécie de doce de fruta, não acrescentou nada à refeição. Eu apostaria a minhas fichas em outras opções neste capítulo.

[A mistura de sabores na sobremesa (©joão miguel simões (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Mas o saldo final foi muito positivo. Comida saborosa, preço muito razoável (paguei cerca de 20 euros) e serviço amável.  À saída, invadiu-me uma agradável sensação de estar saciado, mas leve. E o desejo que os lisboetas aderiram a esta primeira incursão para valer da cozinha peruana em solo nacional.

Rua dos Bacalhoeiros, 26, tel. 218 868 061, de seg. a sáb, das 12.00 às 16.30 e das 19.00 às 00.00

31.8.12

fora de portas: da terra e do mar, simples assim, porque o verão ainda não acabou na fortaleza do guincho


[Magníficos dias atlânticos no Guincho (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Os olhos também comem, é sabido, mas no caso da proposta do restaurante da Fortaleza do Guincho para o último fôlego do verão, nem precisamos preocupar-nos em ter mais olhos do que barriga.

[O amuse-bouche desde logo a prometer frescura, com figos, legumes e vegetais crocantes e flores comestíveis (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Porque o propósito é mesmo esse, o de sermos desde logo arrebatados pelos olhos, sem termos depois de carregar o remorso do excesso e do pecado da gula.

[Bouquet de legumes da Quinta do Poial cozinhados com limão confit e manjericão, pãozinho de sémola com Culatello di Zibello (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Num dia radioso escolhido a dedo, daqueles raros em que o mar do Guincho surge amansado e nem sinal de vento, Vincent Farges, o chef executivo, quis mostrar que há sempre possibilidades a explorar; até mesmo dentro de um menu sazonal que, logo à partida, tinha apostado mais nos pescados e nos legumes.

[Filete de salmonete assado com óleo de limão, os fígados em condimento com pimento confitado, legumes glaceados com cominhos e açafrão e molho avinagrado (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

E faz sentido que assim seja, pois a estrela Michelin, o ar rebuscado da Fortaleza (por mais que aqueles janelões do restaurante, sobre o mar, nos façam esquecer tudo o resto) e o rótulo assumido de alta cozinha francesa poderão levar os mais desprevenidos a pensar que verão, leveza, informalidade e Fortaleza do Guincho não rimam.

[Cherne da nossa costa assado com girolles, pequenos legumes com toucinho Colonnata e molho do assado (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

E a verdade é que pode até dar uma bela rima.

[Borrego Allaiton de Aveyron assado, boulangère de aipo e Pata Negra, barigoule de alcachofras e funcho (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Vincent Farges, já aqui o escrevi por mais de uma vez, tem vindo a ganhar protagonismo ao leme do restaurante, sem desprimor para a consultadoria afetiva, a cada três meses, do seu mentor, o chef Antoine Westermann. E é quando está mais solto, e tem por isso maior liberdade criativa e margem de manobra para ousar, que, arrisco-me a dizê-lo, eu mais aprecio a cozinha do Guincho.

[O borrego já com o molho (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Não é de hoje que Farges faz a apologia do bom peixe português e que aposta, sem descurar outros produtos essenciais à cozinha que pratica e que não se encontram no mercado nacional, nos legumes produzidos pela Quinta do Poial, mas que bom ver (e saborear) uns e outros num almoço próprio para os dias quentes, com cheiro, sabor e textura a terra e mar.

[Nage de pêssegos com citronela, gelado de lúcia-lima e pequenas Madalenas (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

A Quinta do Poial tornou-se uma espécie de coqueluche dos chefs (além de Farges, outros adeptos são o José Avillez, do Cantinho e do Belcanto, ou o Henrique Mouro, do Assinatura), dos críticos e de um punhado cada vez mais significativo de consumidores esclarecidos da nossa praça que já não passam sem os seus produtos orgânicos (à venda, todos os sábados, no Mercado Biológico do Príncipe Real). 

[Cerejas salteadas com Kirsch, biscoito e cremoso de pistácio, gelado de Kirsch velho da Alsácia (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

É justo. Maria José Macedo, a principal responsável pela Quinta do Poial (ou o rosto mais visível, pelo menos), percebeu essa lacuna no nosso mercado e tem sabido produzir, com grande mestria e qualidade superior, legumes e ervas aromáticas de ótima cepa. 

[E que mignardises são estas? (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Mais de uma mão cheia deles, nas versões mini (ou baby como também são designados), saltaram para a nossa mesa em criações belíssimas, sem beliscar o seu frescor, de Farges.

[E a praia logo ali, à espreita da Fortaleza do Guincho (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Nas sobremesas, nada a reclamar, muito pelo contrário. Mas, se soubesse, acho que as teria dispensado, em nome da tal leveza que o dia pedia, e ter-me-ia ficado pelas mignardises que vieram com o café. De arregalar os olhos, foi um dó de alma, ai sim, só ter olhos e não mais barriga para as devorar como mereciam.

Estrada do Guincho, Cascais, tel. 214 870 491, todos os dias, almoços entre as 12.30 e as 15.30 e jantares entre 19.30 e as 22.30

14.8.12

vela latina, porque um porto seguro não precisa ser necessariamente cool

[©telmo miller]


Há quantos anos não vai ao Vela Latina

Fiz-me essa mesma pergunta semanas atrás, quando, depois de um longo interregno, entrei no restaurante (não confundir com o snack-bar, que fica também por ali, mas que é um outro conceito).

[O carpaccio (©telmo miller)]

A resposta varia de pessoa para pessoa, mas, de uma forma geral, tem dado que pensar a Guiomar e a Salvador Machaz. Ligada à fundação dos hotéis Tivoli, a família Machaz não está neste negócio há dois dias. Muito pelo contrário; só no Vela Latina, espaço de referência na doca de Belém, com uma localização — a Torre de Belém está a dois e passos e o Tejo, já a fazer-se ao mar, ao alcance do olhar — e uma área que tomara muitos, vão já a caminho das bodas de prata.

[A sala interior, mas com vista (©telmo miller)]

Mas o tempo, nesta como noutras coisas, mesmo quando não é implacável, é sabido, raramente perdoa. Nos idos anos 1990, o Vela Latina ditava modas e não havia guia da boa vida que não apontasse as suas mesas entre as mais influentes da capital. Hoje, entre as suas paredes — cegas, surdas e mudas — continua-se a discutir assuntos de Estado, mas o Vela Latina anda arredado. E olhos que não veem, coração que não sente.

[©telmo miller]

Guiomar e Salvador, primos, receberam o testemunho dos pais e cabe-lhes agora, em tempo de vacas magras (e do famigerado IVA a 23%, último golpe de misericórdia para muitos restaurantes do país), dar continuidade ao legado familiar. O estilo assumidamente náutico da decoração deixou-os divididos – ainda deixa – mas, aos poucos e feitas já algumas pequenas intervenções estéticas (a mais visível delas está na varanda coberta, mais fresca e leve, mas o jardim nas traseiras também deve ganhar em breve melhor uso), estão a chegar à conclusão de que o Vela Latina pode (e deve) ganhar nova clientela sem perder a essência, a discrição e a boa cozinha mediterrânica (onde se inclui um pastel de nata com tradição nas sobremesas) que sempre o caraterizaram e que lhe permitiu manter, independente a modas, um séquito de fiéis onde se incluem inúmeros políticos e empresários da nossa praça. 

[A varanda coberta (©telmo miller)]

São sobretudo estes últimos que dão o tom aos almoços, e que não perdem de vista especialidades da casa como o clássico arroz de coentros com lagosta executado pelo chef Benjamin Vilaça (o peixe e marisco frescos são ponto de honra); aos jantares, há espaço de manobra para ir um pouco além e arriscar mais, embora – crise oblige – os grupos sejam já uma alternativa.

[©telmo miller]

Primeiro fui ao almoço e uns dias depois, com companhia, voltei para jantar. Num caso como noutro, os pratos experimentados, bem executados e bem ao estilo de comfort food (que é como quem diz, técnica de restaurante, mas com sabor a comida de casa), não desiludiram, mas gostei achei a casa mais composta de dia. É a noite — os seus atuais donos sabem-no bem — que representa o maior desafio.

Uma coisa é certa, por algumas voltas que venha a dar, o Vela Latina quer que os lisboetas (e não só) o voltem a encontrar onde sempre esteve. Assim uma espécie de porto seguro. 

Doca do Bom Sucesso, Belém, tel. 213 017 118

8.8.12

e o verão já vai a mais de meio, mas o novo menu de degustação do 100 maneiras ainda cheira (e sabe) a novo

[Ljubomir Stanisic e o novo menu de degustação, que também se come à mão (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Entre as gravações televisivas que o obrigam a viagens constantes por Portugal continental e insular — já falei aqui do livro, "Papa-Quilómetros", na origem do programa com o mesmo nome que passa no canal a cabo 24 Kitchen e que ganhou, não faz assim tanto tempo, uma versão para a Sérvia, país de origem do chef —, as noites mal dormidas por conta do seu mais novo rebento — Ljubo foi pai, pela segunda vez, e, consta, tem aproveitado as vigílias noturnas com o filho para o iniciar olfativamente no mundo da cozinha... — e as demandas constantes dos seus três restaurantes (fora as solicitações, sempre mais do que muitas, da imprensa), Ljubomir Stanisic encontrou ainda tempo para se sentar bem à minha frente, uma noite destas. 

Sentado à mesa, ele mesmo fez questão de apresentar o mais novo menu de degustação do 100 Maneiras (45 euros por pessoa, mas 35 para quem quiser fazer a maridagem de cada prato com os vinhos).

[É assim o 100 Maneiras, o restaurante (foto de divulgação)]

Não vou apresentar o Ljubo. Já escrevi várias vezes sobre ele — ou a propósito dele, como aqui —, e por se ter tornado uma figura mediática, sobretudo depois da participação como júri no MasterChef, é sobejamente conhecido do grande público. Direi apenas que, mesmo cansado, não perde o ar de miúdo traquina (apesar de trintão) e que, mais conhecedor das coisas de Portugal que muitos portugueses aqui nascidos e criados, ele, à moda do Norte, faz do palavrão não uma agressão mas um modo livre de expressão.

[O ambiente e os detalhes da sala (foto de divulgação)]

Também não vou falar do 100 Maneiras, ao Bairro Alto (e não muito longe do irmão do meio, o Bistro), o primeiro da série, que se mantém, no espaço acanhado mais intimista, ideal para quem quer degustar ao jantar, e só ao jantar, a cozinha mais autoral de Ljubo.

[O pão do couvert em saca de sarapilheira (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Na verdade, e como ele mesmo confessa, Ljubo já pouco vai para a cozinha. Daí a importância de um braço direito como, no caso do restaurante 100 Maneiras, o seu chef-executivo João Simões (meu quase homónimo que passou, entre outros, pelo extinto Unique Chiado). Mas, o seu toque está lá e não perde nada de vista — durante a noite, por várias vezes, chamou à atenção o pessoal que servia às mesas, alertando para um prato colocado ao contrário e para outros pequenos detalhes que escapariam a olhos menos treinados.

[Sempre presente... (foto de divulgação)]

Mas vamos ao novo menu de degustação. Por estarmos (ainda) no verão, este apresenta-se, necessariamente, mais leve — Ljubo admite que, se pudesse, incluiria apenas peixe e deixaria de fora a carne —, mas não abre mão de certos "clássicos" da casa que ninguém quer ver de fora.

[... o estendal de bacalhau (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

É o caso do Estendal do Bairro Português, uma ideia de truz que Ljubo teve há anos e que, parece, não cansa quem ali vai. No fundo, explicando aos que não provaram, são pequenos chips de bacalhau desidratado, presos por minimolas como se de roupa se tratasse. Por enquanto, o estendal ainda vem nas armação de inox, mas uma parceria com a Vista Alegre deve trazer, não tarda muito, uma outra versão em porcelana (assim acertem com o molde...).

[A sardinha (foto de divulgação)]

Ainda nos entreténs de boca ou palato, segue-se uma sardinha marinada com guacamole em espetada de pão alentejano e pimento padrón.

[Salmão em carpaccio (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Bem como um carpaccio de salmão com ervas, sorbet de lima, lascas de espargos, funcho e aneto em pickle — que Ljubo ordena que se coma com as mãos.

[A vieira, como uma jóia (foto de divulgação)]

Nas entradas, primeiro vem o que ele diz ser uma tentativa de desconstruir um prato oriental. Traduzido? Uma gorda vieira, escondida num prato-sarcófago com ares de porta-jóias, corada com salicórnia (é ela que dá, no caldo onde também vai gengibre e soja, um toque mais salgado), cogumelos e caldo asiático. 

[O ravioli de pato (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

E entra o ravioli de pato, cogumelos e amendoim em massa de arroz com fricassé de espargos e salsa. Aqui, como no resto servido até então, leveza e uma aposta na sutileza, preferindo notas perfumadas a contrastes muito marcados.

[Bacalhau à brás. mas não como conhecemos (foto de divulgação)]

Nos peixes, Ljubo brinca com o tradicional bacalhau à brás. Como? Apresenta um naco de bacalhau escalfado com brás de batata, couve e coentros (e tomate, que introduz uma nota mais ácida). 

[Limpa-me o palato, por favor (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Nem carne nem peixe: o granizado de limão confitado com citronella (parente da nossa erva cidreira) gengibre e hortelã a servir de intermezzo. Entre o peixe e a carne.

[O leitão, macio por dentro, estaladiço por fora (foto de divulgação)]

Chega-me então um leitão cozinhado a baixa temperatura com maçã Granny Smith caramelizada e nabo. É uma tendência, decididamente. Nos últimos meses tenho comido, não só em Portugal, pratos em que sobretudo a barriga do porco (neste caso é leitão) é cozinhada por horas a fio, para se apresentar depois muito macia por dentro, com uma nota fumada, e com a pele estaladiça por fora.

[Fruta, mas não só (foto de divulgação)]

Para encerrar o repasto que já ia longo, duas sobremesas. Fruta com sabayon de amêndoa e crumble e cacau e, a que me ficou no goto (porque se trata de uma coisa aparentemente simples, mas que resulta em cheio): espuma de queijo com sorbet de goiaba e nougat de medronho, numa releitura muito feliz do "clássico" brasileiro Romeu e Julieta (queijo e goiabada).

["Romeu e Julieta" segundo Ljubo (foto de divulgação)]

Numa época de crise, em que muitos restaurantes (comerciais, mas também de alta gastronomia, perecem), acho que entendo cada vez melhor o sucesso de Ljubomir. Sabe promover-se, aliar-se aos parceiros certos e tem-se mostrado certeiro em juntar ao prazer convivial de estar à mesa uma cozinha autoral, mas com sabores, texturas e harmonizações que são fáceis de assimilar pela maioria dos comensais. 

[Yummy! (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Parece simples de fazer, mas não é.

Rua do Teixeira, 35, tel. 910 307 575, todos os dias, entre as 19.30 e as 02.00
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