25.9.12

na abertura do ano do brasil em portugal, josé avillez faz as honras da casa e prepara dois jantares para mais tarde recordar com os irmãos castanho de belém do pará.

[Felipe, José e Thiago, no Belcanto (©jorge padeiro)]

Tendo em conta que os jantares de hoje (dia 25) e de amanhã (dia 26) estão já mais do que esgotados, o que vou fazer em seguida é quase uma maldade. Redimo-me, ou assim quero pensar, ao acrescentar duas coisas:
— A primeira é que a ocasião e os intervenientes merecem que se fale no assunto.
— A segunda é que ainda há esperança. Por conta das desistências de última hora, o Belcanto de José Avillez criou uma lista de espera.

Dito isto, e de consciência mais aliviada, passo, para quem anda distraído, a explicar do que se trata.

[Thiago e José na cozinha do Belcanto (©jorge padeiro)]

Até junho de 2013, Portugal e Brasil vão celebrar-se mutuamente através de uma programação cheia, de um lado e de outro do Atlântico. A gastronomia, óbvio, não poderia ter ficado de fora.

[Thiago, Felipe e José testam pratos na cozinha do Belcanto (©jorge padeiro)]

Resumindo, a ideia é que vários chefs brasileiros da primeira linha — e na calha estão já nomes como Roberta Sudbrack, do Rio de Janeiro, que entrou este ano para a lista dos 100 Melhores Restaurantes do Mundo segunda a revista britânica Restaurant, ou Beto Pimentel, do celebrado restaurante Paraiso Tropical de Salvador, na Bahia — sejam recebidos por colegas portugueses e, juntos, criem um menu de degustação a várias mãos para darem a conhecer o seu trabalho e provarem, também na cozinha, o entrosamento entre Portugal e Brasil.

[Belcanto (©nuno correia)]

Uma espécie de duetos improváveis que só mesmo acontecimentos especiais como este permitem que aconteça. Neste sentido, coube aos irmãos Castanho, de Belém do Pará, a honra de abrir o Festival Gastronómico, tendo por cicerone nada mais nada menos que José Avillez e o seu restaurante Belcanto, ao Chiado.

[Thiago e Felipe Castanho (©taiana laiun)]

Por mais de uma vez até escrevi sobre os Castanho, não só no blog mas igualmente numa entrevista recente que será publicada na edição de outubro da revista Volta ao Mundo (em breve nas bancas e e-paper), mas para situar acrescento apenas isto: a escolha não teve nada de aleatória. Thiago, o mais velho, e Felipe, o mais novo, ainda que na casa dos vinte e (muito poucos) anos, são já tidos como valores seguros da nova geração de chefs brasileiros que dá que falar dentro de portas e contribui para uma visibilidade nunca antes vista da gastronomia brasileira no exterior.

[Remanso do Bosque, o restaurante dos Castanho aberto em finais de 2011 em Belém do Pará)]

Instalados em Belém do Pará, na região amazónica, onde a família possui os restaurantes Remanso do Peixe (o pai, Francisco, começou o negócio numa sala da própria casa quando eles eram ainda crianças) e Remanso do Bosque (aberto em finais de 2011), os dois irmãos têm-se mostrados incansáveis na pesquisa de ingredientes e na recuperação do receituário local (para muitos cozinheiros, Belém, graças a mercados como Ver-o-Peso, é uma fonte quase inesgotável de inspiração, aprendizagem e abastecimento), provando que o potencial da cozinha não está apenas no futuro, mas também no passado.

[O amuse-bouche dos Castanho: tucupi, carimã, aviú e jambú (©jorge padeiro)]

Thiago está em Lisboa pela terceira vez desde que, há poucos anos, estagiou por seis meses com Vítor Sobral no extinto Terreiro do Paço. Para Felipe é a primeira vez, pelo que depois de uma passagem pela Cervejaria Ramiro — levados por Avillez, que já a tinha elegido para mostrar a Anthony Bourdain no No Reservations dedicado à capital—, espera ainda ter tempo, até quinta, para cumprir outros rituais como uma ida aos incontornáveis pastéis de Belém.

[A horta da galinha dos ovos de ouro de Avillez (©nuno correia)]

Detalhe curioso, mas não inédito, nem um nem outro conhecia Avillez pessoalmente, mas hoje as redes sociais tornaram tudo mais fáceis. Inclusive o intercâmbio e a troca de conhecimentos entre chefs.

[Cherne, leite de coco e dendê dos Castanho (©jorge padeiro)]

Esta parceria começou a tomar forma há coisa de dois meses, à distância e com várias viagens de uns e outros pelo meio — Thiago e Felipe vieram há pouco de um festival em Quito, Equador, e Avillez passou recentemente pelo País Basco, por São Paulo (onde lhe coube, juntamente com Luís Baena, mostrar a sua cozinha na abertura do Ano de Portugal no Brasil) e por Copenhaga, onde foi conhecer finalmente o Noma de René Redzepi, o melhor do mundo segundo a já citada revista Restaurant). 

[O bombom de cupuaçu dos Castanho (©jorge padeiro)]

Conhecidos por nunca viajarem sem os seus famosos "isopores" (geleiras em esferovite), os Castanho tentaram trazer à socapa o máximo de ingredientes de Belém para Lisboa — em hipótese alguma, confidenciaram-me divertidos, eles abrem mão do tucupi (caldo preparado a partir da raiz da mandioca brava), das farinhas, do jambú (por falar nesta flor, também conhecida por szechuan, que provoca uma certa dormência na boca, eles trouxeram na bagagem uma cachaça artesanal de jambú cujo segredo de fabrico nem mesmo eles conseguem deslindar) ou cumaru (vagem de polpa fibrosa) — mas um bom quinhão ficou retido na alfândega. Tiveram por isso de improvisar.

[Avillez na cozinha do Belcanto (©nuno correia)]

No caso de Avillez, que assume ter-se impressionado sobretudo com o tucupi ou com uso diferente que dão às farinhas, o desafio maior foi o de incluir no menu dos dois jantares alguns pratos que serve no Belcanto e que melhor se prestariam a esse diálogo entre culturas, sabores e texturas.

Já os Castanho, na falta dos peixes amazónicos de rio com que estão mais habituados a trabalhar, aceitaram a sugestão de Avillez para substituir numa dos pratos o filhote por cherne. E parece que deu certo.

Nos dias que antecederam os dois jantares no Belcanto, os Castanho e Avillez estiveram enfurnados na cozinha do restaurante a testar pratos e a harmonia entre os mesmos. Foi um processo interessante, e rico, que fê-los inclusive mudar de ideias e enveredar por outras soluções que no início nem sequer tinham cogitado. Mas essa é a beleza da coisa.


[Thiago, José e Felipe no Belcanto (©thiago castanho, todos os direitos reservados)]

A outra, sem dúvida, será a oportunidade de degustar, prato a prato, o que preparam para as duas noites. Ao contrário de outras cozinhas brasileiras, a paraense não é a que tem mais influências portuguesas, mas ela está lá, como me contou Thiago, em pormenores como as caldeiradas ou o hábito da salga dos peixes. 

Ao todo serão oito pratos. A saber: tucupi, carimã (farinha de mandioca), aviú (camarão pequeno de rio) e jambú, um amuse-bouche dos Castanho; chibé (farinha d'água, camarões secos, frescos), uma entrada dos Castanho; nhoque de banana terra, manteiga queimada e castanha do pará, outra entrada dos Castanho; a horta da galinha dos ovos de ouro, uma entrada já famosa de Avillez; cherne, leite de coco e dendê (óleo de palma), um prato dos Castanho; leitão revisitado, prato de Avillez; "Terra" e citrinos, uma pré-sobremesa dos Castanho; Bombom de cupuaçu (fruta amazónica), sorbet de chocolate da Amazónia, cupuaçu, toffee de cumaru, sobremesa dos Castanho.

[De Belém para Lisboa, a cachaça de jambú (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Como estarei na Colômbia por estes dias, não terei o prazer de ver como resultou, no todo, o menu desenhado a seis mãos, mas, para quem ainda tiver oportunidade (e sorte), parece-me ser coisa a não perder.


[Chocolate 100% cacau de Combu (©thiago castanho, todos os direitos reservados)]

Ficou-me o consolo de ter estado nos bastidores nas vésperas e, entre outras coisas, de me ter sido dado a provar a cachaça artesanal de que falei acima e algo que só tinha visto em fotos dos Castanho: o chocolate 100% cacau de Combu (Amazónia), também totalmente artesanal, que estes começaram a usar. De gosto muito intenso, mas de textura agradável e apresentação inusitada (vem embrulhado em folhas), ele será um dos ingredientes-chave de uma das sobremesas apresentadas.

E que venham mais cinco.

19.9.12

qosqo, que é como quem diz cusco alfacinha

[O ceviche clássico de corvina (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Nunca o Peru esteve tão perto. E não há nada que enganar. A meio caminho entre a Praça do Comércio e a Casa dos Bicos, na castiça e bairrista rua dos Bacalhoeiros (quase, quase encostado à rua Padaria), assentou arraiais o Qosqo.

[À entrada, menu do dia a 13 euros (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

O nome (Qosqo, que é como quem diz Cusco em quechua) não condiz com a enorme gravura que enche toda uma parede, e que retrata Machu Picchu e não Cuzco, mas isso é um mero detalhe. 

[Machu Picchu, e não Cuzco, domina a pequena sala do Qosqo (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Para ser exato, o Qosqo começou a tomar forma num outro endereço alfacinha, o restaurante Isaura da avenida Paris, onde Gabriela e Vasco fizeram dos jantares de sexta uma iniciação aos sabores peruanos. A aceitação tem sido tão boa que, animados, trataram de se juntar a mais dois sócios – o peruano Marco Leya e o português José Araújo – para abrir a casa dos Bacalhoeiros. É uma casa pequenina e despretensiosa, onde não cabem mais de vinte pessoas sentadas (contei!), mas arejada, luminosa e folclórica q.b.

[Porventura, o detalhe mais conseguido da decoração (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

O espaço, sou sincero, não é o forte do Qosqo, mas depressa isso passa para segundo plano. Numa altura em que chefs como Gastón Acurio e Virgilio Martinez (em breve, contarei a minha passagem pelo novo Lima que abriu em Londres!) contribuem para colocar a gastronomia peruana nas alturas (ela é, a par da brasileira e da mexicana, uma das sensações mundiais do momento), a proposta do Qosqo é muito mais modesta; mas nem por isso de menosprezar. 

[Para começar uma Cusqueña e canchita (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Pelo contrário, embalados pelo portunhol do solícito empregado de mesa argentino e pela música de fundo andina, os nossos olhos fixam-se no menu escrito na ardósia por cima do balcão. Os menos afoitos podem sempre optar pelo menu do dia  — que sai por 13 euros com prato (chaufa de mariscos), bebida, sobremesa e café —, mas o meu conselho é que se lembre da velha máxima «quem não arrisca, não petisca». Nas bebidas, há sangria, imperial, mas também uma legítima cerveja peruana (a Cusqueña, uma Premium encorpada de pura cevada) e limonada (ao almoço dificilmente vai encontrar o famoso cocktail Pisco Sour). 

[As empanadas de carne de vaca (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Como aperitivo, a canchita (milho torrado, muito macio, que muitos descrevem acertadamente como uma pipoca que não estourou) faz as vezes dos nossos tremoços, ao passo que as empanadas de carne de vaca (no recheio vai também passas e a massa tem um polvilho doce que recebe bem a acidez de umas gotas de lima) são das entradas que mais saem.

[O ceviche mais em detalhe (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Nos pratos, há mais opções de frios do que quentes (por regra, só um, o que achei pouco), mas, na dúvida, escolha o ceviche da casa com corvina, camarões, rodelas de polvo e de lula marinados em sumo de lima, cebola roxa e picante. O camote, a batata doce laranja, dá uma textura extra muito bem-vinda ao prato, e quem quiser pode também acrescentar um pouco do milho torrado (este pequeno "truque" foi-me ensinado no restaurante londrino de Martinez, precisamente). 

[O arroz doce em versão peruana (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Para encerrar, a sobremesa da casa, que não gera unanimidades, é o arroz doce em versão peruana. Estive quase para passar, mas, a curiosidade falou mais alto. A verdade é que a dita, que leva também passas e uma espécie de doce de fruta, não acrescentou nada à refeição. Eu apostaria a minhas fichas em outras opções neste capítulo.

[A mistura de sabores na sobremesa (©joão miguel simões (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Mas o saldo final foi muito positivo. Comida saborosa, preço muito razoável (paguei cerca de 20 euros) e serviço amável.  À saída, invadiu-me uma agradável sensação de estar saciado, mas leve. E o desejo que os lisboetas aderiram a esta primeira incursão para valer da cozinha peruana em solo nacional.

Rua dos Bacalhoeiros, 26, tel. 218 868 061, de seg. a sáb, das 12.00 às 16.30 e das 19.00 às 00.00
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