30.6.11

novo menu de degustação do bocca prato a prato (e explicado pelo chef)

[Algodão-doce eléctrico, uma das criações do restaurante Bocca (©alexandre silva, todos os direitos reservados)]
Na origem deste post está uma conversa, via Twitter, que iniciei há uns tempos com o restaurateur Pedro Aragão Freitas, proprietário do Bocca, e que foi despoletada pela foto de uma criação de Alexandre Silva, o chef do restaurante, reproduzida acima.


Nela aparecem botões de szechuan, mas eu, que estive no final do ano passado em Belém do Pará (Brasil), achei que seriam flores de jambú (também conhecido por agrião do Pará), utilizadas na confecção de um prato que me ficou na lembrança, o pato no tucupi. Descobrir que um dos mais conhecidos restaurantes da capital estaria a usar um parente do ingrediente amazónico foi algo que não deixei, claro, passar em branco.


Conversa vai, conversa vem, acabámos por concluir que szechuan e jambú seriam, senão a mesma coisa, pelo menos da mesma família (até pelos efeitos de dormência que ambas produzem quando trincadas) e isso abriu caminho para que me fosse lançado o repto de ir ao Bocca não só provar o algodão-doce eléctrico, mas o novo menu de degustação.


Um desafio muito simples de aceitar.


[Uma das salas do Bocca (foto de divulgação)]


aqui falei antes do Bocca, por isso não me vou alongar muito mais neste preâmbulo. Importa, no entanto, dizer que, com cerca de três anos de existência e uma localização agradável nas imediações da Avenida da Liberdade (ainda que afastado da sua maior "movida" e fora do eixo do Chiado, que parece ter-se tornado na zona mais desejada da capital pelos chefs e restaurateurs), este restaurante tem feito um caminho muito discreto, sem excesso de modismos nem tiques novo-ricos, mas coerente. 


Numa rápida leitura das críticas especializadas, percebe-se facilmente que a maioria lhe é muito elogiosa, o que se traduz igualmente no reconhecimento através de prémios importantes a nível nacional como o recente Garfo de Ouro pelo guia "Boa Cama, Boa Mesa 2011".


Falta-lhe, quiçá, uma maior visibilidade fora de portas, o que lhe garantiria, porventura, um outro lugar na constelação internacional. O Bocca pode ir mais longe. Tem ingredientes para isso: uma equipa jovem e motivada, um espaço contemporâneo e de bom gosto, praticando, detalhe fundamental, uma cozinha que acusa a influência molecular — na forma como redesenha sabores e testa a nossa memória gustativa —, mas que acompanha a tendência mais actual de voltar à raiz e de não cair na tentação do experimentalismo pirotécnico.


Precisa, atrevo-me a acrescentar, um nada mais de ousadia. Um toque extra de génio. Mas, o essencial, parece-me, já está lá. Por outro lado, entendo perfeitamente que, na presente conjuntura, importe também, antes de tudo mais, assegurar a viabilidade económica do projecto.


Adiante.


Aproveitei a presença do chef Alexandre Silva, que não limita os seus dotes à cozinha e faz também ele as fotos das suas criações, para me explicar, prato a prato, o principal menu de degustação. A ementa muda duas vezes por ano. Com a carta nova, estreada um pouco antes do início do Verão, o Bocca chega à maturidade, depois de reflectir sobre as suas orientações, e mantém-se firme na sua intenção de, antes de tudo o resto, enaltecer os produtos que utiliza no seu receituário — não é por acaso que os nomes dos pratos, em vez de invenções pomposas, ostentam os ingredientes, tout court


Como muitos outros chefs, Alexandre Silva aspira pelo dia em que conseguirá encontrar no nosso mercado, e junto dos nossos produtores, uma regularidade, uma qualidade e até uma estabilidade de preços que lhe permita depender mais da sua oferta. Para já, e tirando algumas honrosas excepções, tal ainda não é possível, mas a sua proposta de apresentar cada vez mais uma cozinha contemporânea executada ao melhor nível, de matriz assumidamente portuguesa, é uma aposta para continuar. Disso, não abre mão.


[O chef Alexandre Silva (foto com direitos reservados)]


Já na mesa, depois do couvert, com vários tipos de pães de fabrico próprio e azeite, abro o menu de oito pratos com um amuse-bouche: salmão, maçã Granny Smith e ervas finas. Muito fresco, ideal para esta altura do ano, apresenta o salmão em rolinhos, curado em ervas, numa vichyssoise de maçã. E não fica por aqui, noto ainda o gosto da maçã no sorvete e nos cubos caramelizados.


[©alexandre silva, todos os direitos reservados]


Segunda entrada fria: a sardinha assada e a salada algarvia. Mais uma vez, um excelente prato de Verão, que revisita clássicos da gastronomia popular de uma forma igualmente simples, mas com o seu quê de sofisticação. Alexandre Silva regressou há pouco do Algarve e isso inspirou-o a criar uma salada em forma de sopa fria, ao passo que em vez da sardinha assada no carvão, apresenta antes o peixe num filete marinado. A parte lúdica do prato fica por conta dos flocos de carvão a boiar na sopa. A fazer as vezes do carvão uma base de pão adocicado tingido com tinta de choco.


[©alexandre silva, todos os direitos reservados]


Na terceira, e derradeira, entrada fria, um teste à minha curiosidade. Não faço segredo que não sou apreciador de carnes de gosto mais intenso, como o borrego. Mas, em casos muito especiais, abro excepções e deixo-me levar pela curiosidade. Alexandre Silva, por tudo o que faz, merece-me esse voto de confiança. E não me arrependi. 
O borrego e a hortelã é uma re-leitura da receita tradicional do guisado de borrego com ervilhas e hortelã. Logo de caras, o chef eliminou as ervilhas, que na versão original mal se sentem, e tratou de trabalhar os outros elementos ao seu gosto. O borrego chega-me assim como um delicioso tártaro com sorvete de hortelã, puré de gema de ovo cozinhado a uma temperatura muito baixa (65ºC) e folha de arroz, ervas e flores (a tirinha na foto). O segredo para o gosto suave da carne consiste em usar apenas o lombo e em raspar completamente todos os ossos para assegurar que não transmitirão mau sabor. 


[©joão miguel simões, todos os direitos reservados]


Mantém-se, já nos pratos principais do menu, o elemento marinho: pregado, pinhão e mexilhão. Neste prato, Alexandre usa e abusa da técnica francesa para conseguir, como base, um aveludado de mexilhão, cozinhado no seu caldo e suco. Como é seu apanágio, mistura o doce, o salgado e o ácido para conseguir um todo equilibrado, pelo que o filete de pregado é salteado sobre legumes da época e os cogumelos são salteados com pinhões.


[©joão miguel simões, todos os direitos reservados]


Estou pronto para a etapa seguinte: o borrego, os padróns e as especiarias. Neste prato, Alexandre Silva acusa a influência da Índia e da América Latina. Mais uma vez, a carne do borrego, um lombo grelhado, surpreende-me pela sua suavidade. Os pimentos padrón, assados no forno, dão uma nota acre, as três especiarias um tom apimentado, mas sem excesso, quebrado pela doçura, mas non troppo, do puré de cenoura.


[©joão miguel simões, todos os direitos reservados]


Antes de passarmos para a etapa final, impõe-se um limpa-palato. É-me servido, finalmente, o famoso algodão-doce eléctrico. Alexandre Silva continua a brincar com o nosso imaginário. Em vez de uma nuvem espetada num pau, como nos habituámos a vê-lo nas barraquinhas de feira, a versão do Bocca é servida num copo de cocktail, enrolada numa colher. Primeiro fica-me na boca o gosto açucarado, até que, a posteriori, os rebentos de szechuan, em pequenas pitadas, provocam-me a já conhecida dormência, seguida de uma sensação refrescante idêntica à de um chiclete mascado. Excelente jogada.


[©joão miguel simões, todos os direitos reservados]


A pré-sobremesa traz um elemento que Alexandre Silva, de uma forma ou de outra, arranja sempre maneira de incluir nas ementas: o arroz doce. Mas, como seria de esperar, não é o arroz doce na sua forma mais convencional. O prato fundo, que lembra os de sopa, serve para que na base desta re-leitura haja um creme gelado de arroz doce, polvilhado com bolacha de canela e aromatizado com zestes de limão — ou seja, os elementos habituais da receita estão aqui todos, para assegurar que a nossa memória gustativa identifica os sabores que associamos ao arroz doce, mas o chef redesenhou a sua apresentação. O toque final, para dar a nota de acidez que Alexandre tanto aprecia, é conseguido pelo gelado de limão.


[©joão miguel simões, todos os direitos reservados]


A última sobremesa: o chocolate e o tiramisú. O chocolate fica por conta de um bolo quente, ao melhor estilo de um soufflé, ao passo que a framboesa se apresenta na forma de uma espuma muito leve, mas que dá ao conjunto uma bem-vinda nota de acidez para cortar o doce. O crocante de banana é o toque mais subtil.


[©joão miguel simões, todos os direitos reservados]


O tiramisú (na foto, é o rolo café-creme) chega-nos como um gelado, mas o curioso, como me explicou o chef, é que para atingir o ponto é preciso fazer um tiramisú de raiz para depois, numa máquina própria, o processar até adquirir a consistência desejada.


Uma nota final para os vinhos. No meu caso, cada prato foi "maridado" (que é como quem diz harmonizado) com um vinho diferente, o que implica um acréscimo de €25 a €20 ao preço do menu de degustação. Vale a pena, pois o Bocca possui uma excelente garrafeira — entre as várias propostas, foi-me servido um Senhor d'Adraga, uma marca nova da região de Colares de que já falei num post anterior, o que prova que estão sintonizados com o mercado —, mas, não se acanhe se quiser beber apenas a copo, pois este é um restaurante que cumpre perfeitamente esse requisito. 


Saliento ainda que os menus de degustação — o de oito pratos aqui descrito custa €52 e o de cinco pratos sai por €43 — são servidos quer ao almoço, quer ao jantar. Os pratos podem também ser pedidos à la carte (consulte o menu actual aqui), sendo que nos almoços há ainda a possibilidade de optar pelos menus executivos (entre €21 e €27).

Para terminar, deixo o vídeo "caseiro", realizado pelo chef, para dar a conhecer o novo menu do Bocca:


Rua Rodrigo da Fonseca, 87-D, tel. 213 808 383, almoços de ter. a sex., entre as 12.30 e as 14.30, e sáb., entre as 13.00 e as 15.00; jantares, de ter. a sex., entre as 19.30 e as 23.00, e sáb., entre as 19.30 e as 23.00

27.6.11

estrela, parte 2 | a cantina

[A Cantina, o restaurante do Hotel da Estrela, alinha pelo mesmo espírito escolar, mas os alunos da Escola de Hotelaria estão ainda mais presentes (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]


Apresentado o hotel, é chegado agora o momento de passar à mesa.

Quem leu o post anterior — e quem não o fez, é fácil, bastar clicar aqui —, não vai ficar surpreso se começar por dizer que o nome escolhido, Cantina da Estrela, não é apenas um mero exercício de retórica ou de estilo.

No hotel a temática escolar está omnipresente, para onde quer que nos viremos; no restaurante, situado no piso -2 e com entrada directa pela rua através do jardim e da esplanada, a decoração não destoa, mas é — acertadamente, a meu ver — mais subtil nas referências. Ainda assim, os apontamentos, escolhidos a dedo, não enganam: numa mesa central, ladeada de cadeiras Eames, lá estão a máquina de escrever Royal, os mapas, as réguas, os esquadros...

Num universo escolástico, sejamos sinceros, a palavra cantina nem sempre nos traz boas recordações. Não, pelo menos, no que diz respeito à qualidade da comida. Pois bem, quanto a isso, e já à laia de salvaguarda, não há o que temer.

[A Cantina da Estrela mistura, como o hotel, elementos tradicionais das décadas 1940 e 1950 com peças de design contemporâneo criadas por Panton ou Eames (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

A Cantina da Estrela, com capacidade para 60 pessoas, quer ser um restaurante de bairro, o que, por outras palavras, equivale a dizer ambiente familiar, despretensioso — mas moderno, funcional — e uma cozinha saborosa, de raiz mediterrânica, à base de produtos frescos. É um restaurante "à séria", mas divertido e com o seu quê de experimental — mas calma, não se precipite ao ver nisso um sinal de fraqueza ou excentricidade.

(É assim a mesa posta na Cantina da Estrela (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Explico melhor.

A ementa foi criada e é supervisionada pelo chef Luís Casinhas, mas a equipa que a executa e que serve às mesas é sobretudo constituída pelos alunos da Escola de Hotelaria de Lisboa, honrando assim o protocolo estabelecido.

Este facto desperta a curiosidade, mas será que, por outro lado, também não levanta suspeitas a um público por norma mais conservador que, sem saber exactamente ao que vai, pode julgar que o querem tomar por cobaia para aprendizes de feiticeiro?

Nada disso.

Na verdade, o mais provável é até que se abstraia do facto de estar a ser servido por alunos e que só se lembre do conceito pelo facto de a ementa ser, ela também, algo sui generis.

Não, a comida é sagrada e quanto a isso não há brincadeiras. A "novidade" tem a ver com o processo de pagamento, pois cada item do cardápio tem um valor mínimo e um valor máximo, pelo que cabe ao comensal, mediante o seu grau de satisfação, optar por um ou por outro.

E, da mesma forma, no final, o cliente é também chamado a pronunciar-se sobre o serviço, cabendo-lhe decidir se quer deixar uma "gorjeta" de €2 (mínimo) ou de €4 (máximo). Não há intervalos de valor, é mesmo para eleger entre o mínimo e o máximo. Como numa prova, o pessoal da Cantina da Estrela quer ser constantemente avaliado.

Confuso? Talvez fique mais claro se passarmos à parte prática.

[©joão miguel simões, todos os direitos reservados]

Comecemos pelo couvert, que, tal como as bebidas, é uma excepção à regra, pois tem um preço fixo de €2. É constituído por pão, manteiga e o que houver no dia (no meu caso foi azeitonas e uma salada bem temperada).

[©joão miguel simões, todos os direitos reservados]

Nas entradas, que na foto aparece junto ao pão do couvert (detalhe, vem numa vasilha), optei por uma sopa fria de rúcula, polvilhada de pinhões, pela qual poderia pagar €3 ou €6. Outras opções: carpaccio de bacalhau com picadinho alentejano, creme de alho francês e amêndoa ou pissaladière (base de massa folhada, muito fina).

[©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Como prato principal, elegi o que me parece ser um dos cartões de visita da casa: o risotto de citrinos com vieiras, servido num belo tacho, pelo qual se pode pagar €7 ou €14.

[©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Existe, claro, mais por onde escolher. Linguini nas massas; polvo, bacalhau ou salmão no peixe; hambúrguer, cachaço de porco preto, borrego, bochecha de vaca ou bife do lombo nas carnes. Variam entre os €7 e os €20.

[©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Nas sobremesas ("mas só para os meninos que comeram a papa toda", como se lê na bem-humorada ementa), não resisti a provar a versão de ovo d'O Melhor Pão-de-ló do Universo (já falei da versão de chocolate, a minha preferida, aqui), polvilhado com canela (hummm!), entre €3,50 e €7.

[©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Quem quiser pode antes optar pelo leite creme com gelado de tomilho, par de crumbles, sopa fria de morango, gelado de salame de chocolate, gelados Artisani e fruta da época. Entre €2 e €6.

[O estilista Manuel Alves no dia em que foi conhecer a Cantina da Estrela ©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Na hora de tomar o café, para encerrar a experiência com chave de ouro, nada como agarrar no dito e ir para a esplanada, agora que o tempo a isso convida. Aliás, o bar e a esplanada, durante a happy hour, servem bebidas por metade do preço. Para anotar.

Rua Saraiva de Carvalho, 35, tel. 211 900 100, de ter. a sáb, almoços entre as 12.30 e as 15.00; jantares entre as 19.30 e as 22.30

22.6.11

estrela, parte 1 | o hotel

[Entre jardins, a vista a partir do Hotel da Estrela pode ser tão abrangente como a que se vê na foto; abaixo: a fachada do antigo palácio agora convertido em hotel (fotos de divulgação)]


Em um ou outro trecho, a Saraiva de Carvalho, entre o Largo do Rato e a Ferreira Borges (já em Campo de Ourique), permite-se alguma largueza, mas é, no geral, uma rua esguia e delgada.

E ainda assim, espaço é coisa que não falta ao Hotel da Estrela, inaugurado em finais de 2010, o benjamim da já considerável prole do Grupo Lágrimas Hotels.

Paredes-meias com a Escola de Turismo e Hotelaria de Lisboa, o hotel, instalado no antigo Palácio dos Condes de Paraty, não faz disso uma coincidência. Nem podia. A concessão do mesmo, atribuída em concurso pelo Turismo de Portugal, previa desde logo entre as duas unidades uma cooperação a diversos níveis.

Mais do que um hotel-escola (porque, sim, muitos dos seus colaboradores são estudantes), este é um hotel que, pelas várias circunstâncias e especificidades inerentes à sua condição, decidiu que o seu tema não poderia ser outro que não a escola. 

É que, não bastasse ter por vizinha a Escola de Hotelaria, nas redondezas fica outro dos mais emblemáticos estabelecimentos de ensino da capital: a Escola Secundária Pedro Nunes, antigo liceu, entretanto fundida com a igualmente histórica secundária Machado de Castro.

[Vários detalhes da recepção, que nos remetem logo para uma sala de aulas da primeira metade do século XX (fotos de divulgação e de ©joão miguel simões)]

Explicados os porquês, só estranha à chegada quem ali for parar ao engano. Nos últimos tempos, há uma certa tendência para que mais e mais hotéis transformem as suas recepções em salas de estar. No caso do Hotel da Estrela, a recepção convida a estar, que para isso lá estão dois enormes sofás bojudos (que já foram brancos e agora são de muitas cores, como mantas de retalhos), mas qualquer semelhança com uma sala de aulas não é pura coincidência.

[A biblioteca, contígua à recepção, é um espaço de trabalho ou lazer, onde existe um honesty bar (@joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Em vez de um balcão corrido, as duas secretárias do check in-out, austeras assim como as cadeiras à sua frente, são as mesmas que os professores de antes usavam. Atrás, uma enorme ardósia negra. Por momentos, recuamos no tempo — olho à volta e vejo bibes pendurados num bengaleiro, um busto da República (só não se colocou, por motivos óbvios de bom senso, um retrato de Oliveira Salazar, como era costume então) no topo de um armário e dois globos terrestres a ladear a entrada.

[A par dos objectos antigos, este é um hotel urbano que aposta igualmente em peças de designers contemporâneos (@joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Mas não há chamadas ao quadro, nem reguadas, nem puxões de orelha.

Trata-se de um mero exercício lúdico, muito bem trabalhado pelo designer de serviço, Miguel Câncio Martins — que dispensa maiores apresentações, tamanha tem sido a repercussão de trabalhos internacionais como o Buddha Bar de Paris ou o Pacha de Marraquexe —, com a total cumplicidade do presidente executivo do grupo, Miguel Júdice.

Pelo perfil do hotel, urbano e informal, duvido que a maior parte dos seus hóspedes tenha mais de 40, 50 anos. Assim sendo, para muitos deles, como para mim, as memórias aqui evocadas são mais as dos nossos pais e avós do que as nossas, mas a memorabilla diz-nos algo. Ela faz parte do nosso património afectivo.

E não haja equívocos. Desde o primeiro momento, fica bem claro que este é um hotel contemporâneo, audaz ao ponto de misturar, sem medos, reproduções das cadeiras plásticas mais famosas assinadas por Verner Panton ou Eames com os tais móveis e objectos — como livros de cordel, uma máquina de escrever Royal, planisférios, posters dos anos 1940, réguas, esquadros... — que habitaram o quotidiano de várias gerações de portugueses na primeira metade do século XX.

[A suite 18, a preferida do designer Miguel Câncio Martins (foto de divulgação)]


Feito o check in, depressa descubro que me calhou em sorte o nº11. Há apenas 13 quartos e seis suites, distribuídos pelo primeiro e segundo andares. A preferida, e também a mais fotografada, do Miguel Câncio Martins é a suite 18, sendo que duas delas possuem um atractivo extra: camas Hästens, a tais que são fabricadas artesanalmente na Suécia, sendo consideradas, até pelo preço astronómico, o Rolls-Royce dos leitos.


[Todos os quartos e suites possuem elementos comuns, mas depois variam no tamanho, no formato e nos acessórios (foto de divulgação)]


Ainda não foi desta que tive o prazer de ficar corpo a corpo com a realeza das camas, mas, verdade seja dita, não tive o que reclamar da minha. No geral, os restantes colchões do hotel são de primeira. Comum a todos os quartos também, certos detalhes como as cabeceiras onduladas verde-cítricas e as alcatifas de fundo negro, onde foram impressos, a branco, bonecos, palavras e fórmulas matemáticas desenhados por Câncio e pela sua filha quando esta ainda era criança. No resto, os quartos variam de tamanho, de formato e alternam cadeiras e outras peças mais ou menos utilitárias.





[Detalhes dos corredores e do quarto nº11, o que me coube em sorte (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Nos corredores, a branco e amarelo (para lembrar as cores dos bibes escolares, segundo Câncio), no lugar de placas há ardósias penduradas com o número dos quartos escritos a giz. Nas portas, em vez da placa "Do not disturb/Please make up my room", uma outra onde se lê "Studying hard/Out playing".

[A placa para colocar na porta do quarto alinha pelo mote do hotel (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Sempre a escola. E nem por coincidência, quando me chego à janela, além do Tejo (não chego a avistar a Basílica da Estrela, mas há quem tenha essa sorte de outros quartos), oiço a chilreada das crianças no recreio. Nem de propósito.

[O amanhecer na Estrela (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

O serviço é afável e informal. Por isso mesmo, indicado para uma clientela mais jovem, capaz de apreciar a maior liberdade de movimentos e o facto de estar num hotel que consegue ter vivência de bairro, sem deixar de ser cosmopolita.

O Hotel da Estrela e o seu principal mentor, Miguel Júdice, não escondem que querem receber quem vem de fora, sem se esquecerem de prestar um serviço a quem vive em Lisboa.

Como?

[O pequeno jardim e a esplanada, com acesso directo pela rua, nas traseiras do hotel (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

No piso menos dois, ligados a uma esplanada e a um pequeno jardim (por agora, enquanto as árvores não crescem, o lago e os poufs à volta são o maior atractivo) com entrada directa pela rua, funcionam o bar e o restaurante Cantina da Estrela.

[O bar, com várias cadeiras de Eames (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Do segundo, porque se presta a isso, falarei num próximo post. Mas posso já adiantar que foram pensados para atender as necessidades dos hóspedes — o buffet de pequeno-almoço é servido ali, por exemplo —, mas que boa parte da sua graça está em serem um chamariz eficaz para atrair ao local quem não está só de passagem na cidade. 

[O pequeno-almoço do Hotel da Estrela (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

E isso, para mim, é quase sempre uma mais-valia num hotel.

Rua Saraiva de Carvalho, 35, tel. 211 900 100, quartos duplos desde €159 por noite

21.6.11

a carta de verão e o novo chef do flores

[Vasco Lello, o novo chef do restaurante Flores, ao Bairro Alto (foto de divulgação); abaixo: ementa do almoço de apresentação da carta de Verão (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]


Carta nova. Chef novo. Dois motivos de peso para voltar ao Flores, o pequeno mas sempre simpático restaurante do Bairro Alto Hotel, e ficar a par das novidades que chegaram com o Verão.

Vasco Lello teve cerca de dois meses para se adaptar à casa e imprimir a sua marca no menu que, a partir de hoje e durante todo o Verão, será o principal cartão de visita do restaurante.

Bastante jovem ainda, Lello teve oportunidade de passar já por alguns hotéis de peso, como o Le Méridien (onde teve por mestre o chef Eduardo Mello) ou o Pestana Palace (onde trabalhou directamente com Aimé Barroyer), o que lhe dá, à partida, um bom jogo de cintura para lidar com as particularidades de um desafio deste género — porque há diferenças num restaurante de hotel.

[O Flores em clima assumido de Verão (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

A sua cozinha é de matriz assumidamente portuguesa, com influências mediterrânicas, e isso fica claro ao passarmos os olhos pela carta que preparou para esta estação.

Num primeiro almoço de degustação, fiquei bem impressionado com o que vi e saboreei. Combinações menos óbvias, mas ainda assim consistentes e abordáveis para a maioria dos palatos; um bom equilíbrio entre os vários ingredientes, o que torna os pratos leves (detalhe importante, sobretudo no Verão); e um empratamento contemporâneo, agradável à vista e bom de comer.

Mas vamos ao prato a prato.

[A entrada: trio de terrine de foie gras, compota de cereja e gelatina de ginjinhas (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Nas entradas, seis propostas — a saber: creme de Topinambur; vieiras coradas com salada de rúcula e laranja, ficando o toque salgado por conta do presunto e Sumagre; sardinha assada com flor de sal e orégãos, num gaspacho com tomate, pepino e pimentos; queijo de cabra e figo tépidos, acompanhados por salada de três alfaces; cachaço em lascas, queijo de Nisa derretido e "Galegas"; trio de terrine de foie gras, compota de cereja e gelatina de ginjinhas. 

[O prato de peixe: bacalhau confitado  com Ras-el-hannout, papas de grão, harira, briouat (com recheio de tâmaras) e óleo de Argan (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Seguiu-se, como peixe, um bacalhau confitado  com Ras-el-hannout, papas de grão, harira, briouat (o canudinho crocante no topo, com recheio de tâmaras) e óleo de Argan. Um prato com um toque magrebino que cai muito bem e que tira o máximo partido da versatilidade do bacalhau. Sem dúvida, um "must" da nova carta.

As outras propostas no mesmo capítulo são um salongo no sauté de ostras e limão; peixe-espada com uma crosta de camarão e ervas frescas; e atum na chapa com sésamo e molho "Ponzu".

[O prato de carne: novilho enrolado com alecrim, pimenta preta, lentamente estufado sobre legumes de uma "Jardineira" (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Nas carnes, chegou-me um novilho enrolado com alecrim, pimenta preta, lentamente estufado sobre legumes de uma "Jardineira". Muito tenro e irrepreensivelmente leve.

As outras escolhas são cordoniz frita com alho, louro e vinho branco; sela de coelho braseada com os "miúdos" e perna assada e desfiada; bochechas de porco preto com tomilho sobre papas secas de milho. Nem carne, nem peixe, uma opção de risotto com espargos verdes, beringela assada e Parmesão.

[A sobremesa: bolinho de amêndoa, pêssego rosa e gelatina de "Amarguinha" (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Para rematar, quatro sobremesas a escolher entre bolinho de amêndoa, pêssego rosa e gelatina de "Amarguinha"; "famoso cocktail" de coco em bolo e ananás em creme; morangos frescos com gelado de champanhe; e, d'Além Mar, chocolate, banana e maracujá. Elegida a primeira opção, poderia facilmente ter descambado para algo pesado e indigesto, mas Lello soube transformá-la numa sinfonia de sabores e texturas subtis e perfumados (reforçado pela flor comestível).

[Um pequeno "mimo" para os convidados do primeiro almoço de degustação: biscoitos no lanche (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Bairro Alto Hotel, Pç. Luís de Camões, 2, tel. 213 408 252, almoços, entre as 12.30 e as 15.00; jantares, de dom. a qua., entre as 19.30 e as 22.30, de qui. a sáb., entre as 19.30  e as 23.30. Menus fixos a partir de €21 por pessoa
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