[Algodão-doce eléctrico, uma das criações do restaurante Bocca (©alexandre silva, todos os direitos reservados)] |
Nela aparecem botões de szechuan, mas eu, que estive no final do ano passado em Belém do Pará (Brasil), achei que seriam flores de jambú (também conhecido por agrião do Pará), utilizadas na confecção de um prato que me ficou na lembrança, o pato no tucupi. Descobrir que um dos mais conhecidos restaurantes da capital estaria a usar um parente do ingrediente amazónico foi algo que não deixei, claro, passar em branco.
Conversa vai, conversa vem, acabámos por concluir que szechuan e jambú seriam, senão a mesma coisa, pelo menos da mesma família (até pelos efeitos de dormência que ambas produzem quando trincadas) e isso abriu caminho para que me fosse lançado o repto de ir ao Bocca não só provar o algodão-doce eléctrico, mas o novo menu de degustação.
Um desafio muito simples de aceitar.
[Uma das salas do Bocca (foto de divulgação)] |
Já aqui falei antes do Bocca, por isso não me vou alongar muito mais neste preâmbulo. Importa, no entanto, dizer que, com cerca de três anos de existência e uma localização agradável nas imediações da Avenida da Liberdade (ainda que afastado da sua maior "movida" e fora do eixo do Chiado, que parece ter-se tornado na zona mais desejada da capital pelos chefs e restaurateurs), este restaurante tem feito um caminho muito discreto, sem excesso de modismos nem tiques novo-ricos, mas coerente.
Numa rápida leitura das críticas especializadas, percebe-se facilmente que a maioria lhe é muito elogiosa, o que se traduz igualmente no reconhecimento através de prémios importantes a nível nacional como o recente Garfo de Ouro pelo guia "Boa Cama, Boa Mesa 2011".
Falta-lhe, quiçá, uma maior visibilidade fora de portas, o que lhe garantiria, porventura, um outro lugar na constelação internacional. O Bocca pode ir mais longe. Tem ingredientes para isso: uma equipa jovem e motivada, um espaço contemporâneo e de bom gosto, praticando, detalhe fundamental, uma cozinha que acusa a influência molecular — na forma como redesenha sabores e testa a nossa memória gustativa —, mas que acompanha a tendência mais actual de voltar à raiz e de não cair na tentação do experimentalismo pirotécnico.
Precisa, atrevo-me a acrescentar, um nada mais de ousadia. Um toque extra de génio. Mas, o essencial, parece-me, já está lá. Por outro lado, entendo perfeitamente que, na presente conjuntura, importe também, antes de tudo mais, assegurar a viabilidade económica do projecto.
Adiante.
Aproveitei a presença do chef Alexandre Silva, que não limita os seus dotes à cozinha e faz também ele as fotos das suas criações, para me explicar, prato a prato, o principal menu de degustação. A ementa muda duas vezes por ano. Com a carta nova, estreada um pouco antes do início do Verão, o Bocca chega à maturidade, depois de reflectir sobre as suas orientações, e mantém-se firme na sua intenção de, antes de tudo o resto, enaltecer os produtos que utiliza no seu receituário — não é por acaso que os nomes dos pratos, em vez de invenções pomposas, ostentam os ingredientes, tout court.
Como muitos outros chefs, Alexandre Silva aspira pelo dia em que conseguirá encontrar no nosso mercado, e junto dos nossos produtores, uma regularidade, uma qualidade e até uma estabilidade de preços que lhe permita depender mais da sua oferta. Para já, e tirando algumas honrosas excepções, tal ainda não é possível, mas a sua proposta de apresentar cada vez mais uma cozinha contemporânea executada ao melhor nível, de matriz assumidamente portuguesa, é uma aposta para continuar. Disso, não abre mão.
[O chef Alexandre Silva (foto com direitos reservados)] |
Já na mesa, depois do couvert, com vários tipos de pães de fabrico próprio e azeite, abro o menu de oito pratos com um amuse-bouche: salmão, maçã Granny Smith e ervas finas. Muito fresco, ideal para esta altura do ano, apresenta o salmão em rolinhos, curado em ervas, numa vichyssoise de maçã. E não fica por aqui, noto ainda o gosto da maçã no sorvete e nos cubos caramelizados.
[©alexandre silva, todos os direitos reservados] |
Segunda entrada fria: a sardinha assada e a salada algarvia. Mais uma vez, um excelente prato de Verão, que revisita clássicos da gastronomia popular de uma forma igualmente simples, mas com o seu quê de sofisticação. Alexandre Silva regressou há pouco do Algarve e isso inspirou-o a criar uma salada em forma de sopa fria, ao passo que em vez da sardinha assada no carvão, apresenta antes o peixe num filete marinado. A parte lúdica do prato fica por conta dos flocos de carvão a boiar na sopa. A fazer as vezes do carvão uma base de pão adocicado tingido com tinta de choco.
[©alexandre silva, todos os direitos reservados] |
Na terceira, e derradeira, entrada fria, um teste à minha curiosidade. Não faço segredo que não sou apreciador de carnes de gosto mais intenso, como o borrego. Mas, em casos muito especiais, abro excepções e deixo-me levar pela curiosidade. Alexandre Silva, por tudo o que faz, merece-me esse voto de confiança. E não me arrependi.
O borrego e a hortelã é uma re-leitura da receita tradicional do guisado de borrego com ervilhas e hortelã. Logo de caras, o chef eliminou as ervilhas, que na versão original mal se sentem, e tratou de trabalhar os outros elementos ao seu gosto. O borrego chega-me assim como um delicioso tártaro com sorvete de hortelã, puré de gema de ovo cozinhado a uma temperatura muito baixa (65ºC) e folha de arroz, ervas e flores (a tirinha na foto). O segredo para o gosto suave da carne consiste em usar apenas o lombo e em raspar completamente todos os ossos para assegurar que não transmitirão mau sabor.
[©joão miguel simões, todos os direitos reservados] |
Mantém-se, já nos pratos principais do menu, o elemento marinho: pregado, pinhão e mexilhão. Neste prato, Alexandre usa e abusa da técnica francesa para conseguir, como base, um aveludado de mexilhão, cozinhado no seu caldo e suco. Como é seu apanágio, mistura o doce, o salgado e o ácido para conseguir um todo equilibrado, pelo que o filete de pregado é salteado sobre legumes da época e os cogumelos são salteados com pinhões.
[©joão miguel simões, todos os direitos reservados] |
Estou pronto para a etapa seguinte: o borrego, os padróns e as especiarias. Neste prato, Alexandre Silva acusa a influência da Índia e da América Latina. Mais uma vez, a carne do borrego, um lombo grelhado, surpreende-me pela sua suavidade. Os pimentos padrón, assados no forno, dão uma nota acre, as três especiarias um tom apimentado, mas sem excesso, quebrado pela doçura, mas non troppo, do puré de cenoura.
[©joão miguel simões, todos os direitos reservados] |
Antes de passarmos para a etapa final, impõe-se um limpa-palato. É-me servido, finalmente, o famoso algodão-doce eléctrico. Alexandre Silva continua a brincar com o nosso imaginário. Em vez de uma nuvem espetada num pau, como nos habituámos a vê-lo nas barraquinhas de feira, a versão do Bocca é servida num copo de cocktail, enrolada numa colher. Primeiro fica-me na boca o gosto açucarado, até que, a posteriori, os rebentos de szechuan, em pequenas pitadas, provocam-me a já conhecida dormência, seguida de uma sensação refrescante idêntica à de um chiclete mascado. Excelente jogada.
[©joão miguel simões, todos os direitos reservados] |
A pré-sobremesa traz um elemento que Alexandre Silva, de uma forma ou de outra, arranja sempre maneira de incluir nas ementas: o arroz doce. Mas, como seria de esperar, não é o arroz doce na sua forma mais convencional. O prato fundo, que lembra os de sopa, serve para que na base desta re-leitura haja um creme gelado de arroz doce, polvilhado com bolacha de canela e aromatizado com zestes de limão — ou seja, os elementos habituais da receita estão aqui todos, para assegurar que a nossa memória gustativa identifica os sabores que associamos ao arroz doce, mas o chef redesenhou a sua apresentação. O toque final, para dar a nota de acidez que Alexandre tanto aprecia, é conseguido pelo gelado de limão.
[©joão miguel simões, todos os direitos reservados] |
A última sobremesa: o chocolate e o tiramisú. O chocolate fica por conta de um bolo quente, ao melhor estilo de um soufflé, ao passo que a framboesa se apresenta na forma de uma espuma muito leve, mas que dá ao conjunto uma bem-vinda nota de acidez para cortar o doce. O crocante de banana é o toque mais subtil.
[©joão miguel simões, todos os direitos reservados] |
O tiramisú (na foto, é o rolo café-creme) chega-nos como um gelado, mas o curioso, como me explicou o chef, é que para atingir o ponto é preciso fazer um tiramisú de raiz para depois, numa máquina própria, o processar até adquirir a consistência desejada.
Uma nota final para os vinhos. No meu caso, cada prato foi "maridado" (que é como quem diz harmonizado) com um vinho diferente, o que implica um acréscimo de €25 a €20 ao preço do menu de degustação. Vale a pena, pois o Bocca possui uma excelente garrafeira — entre as várias propostas, foi-me servido um Senhor d'Adraga, uma marca nova da região de Colares de que já falei num post anterior, o que prova que estão sintonizados com o mercado —, mas, não se acanhe se quiser beber apenas a copo, pois este é um restaurante que cumpre perfeitamente esse requisito.
Saliento ainda que os menus de degustação — o de oito pratos aqui descrito custa €52 e o de cinco pratos sai por €43 — são servidos quer ao almoço, quer ao jantar. Os pratos podem também ser pedidos à la carte (consulte o menu actual aqui), sendo que nos almoços há ainda a possibilidade de optar pelos menus executivos (entre €21 e €27).
Para terminar, deixo o vídeo "caseiro", realizado pelo chef, para dar a conhecer o novo menu do Bocca:
Rua Rodrigo da Fonseca, 87-D, tel. 213 808 383, almoços de ter. a sex., entre as 12.30 e as 14.30, e sáb., entre as 13.00 e as 15.00; jantares, de ter. a sex., entre as 19.30 e as 23.00, e sáb., entre as 19.30 e as 23.00