26.5.11

fora de portas: fortaleza do guincho, parte 2 | o chef, a estrela, a adega e o conceito

[O mar não é apenas uma vista de cartão postal na Fortaleza do Guincho, ele está também muito presente na carta do restaurante (©paulo barata)

Ganhar uma estrela Michelin não é fácil, mas bem mais difícil é mantê-la por anos a fio sem fazer "apenas" mais do mesmo

O restaurante da Fortaleza do Guincho, aberto há tantos anos quanto o hotel, ganhou a sua pela primeira vez em 2001, numa altura em que o feito era praticamente inédito entre nós.

Nos últimos anos,  o restaurante juntou uns quantos prémios ao seu palmarés  — inclusive acaba de ser distinguido, uma vez mais, com o Garfo de Ouro, atribuído pelo guia Boa Cama, Boa Mesa 2011, do jornal Expresso —, mas, ainda que praticamente todos lhe reconheçam excelência e  constança, não desperta o mesmo entusiasmo de uma novidade.

Um exemplo disso foi o artigo recente do crítico espanhol Carlos Maribona — já lhe fiz referência num outro post —, que teceu uma crítica positiva, sem mácula, mas desprovida de paixão.  

E o Guincho-Restaurante não quer críticas mornas. Quer voltar a despertar entusiasmo e a provocar arrebatamento.

[As rochas, com mar batido, sobre as quais a Fortaleza finca os seus alicerces, são lugar disputado por muitos pescadores amadores (©joão miguel simões, todos os direitos reservados)]

Para isso, sabem-no bem, precisam cativar uma clientela mais jovem — mas assumidamente gourmet e disposta a pagar pelos prazeres de uma boa mesa — e contrariar a ideia instalada de que no Guincho se serve uma cozinha francesa pura e dura, sem muito a ver com a realidade e gosto portugueses.

Também por isso, Antoine Westermann, consultor gastronómico desde o início e responsável pela filosofia de cozinha franco-portuguesa na Fortaleza, tem sabido, sem se afastar por completo de cena, delegar cada vez mais no seu jovem e talentoso chef executivo, Vincent Farges, a tarefa de, sem perder a essência, modernizar e aprimorar o conceito.

O que faz sentido, se pensarmos que é Farges, e não Westermann, que está a tempo inteiro ao comando da cozinha. A sua saída temporária, e passagem por lugares como Marrocos e Grécia, foi determinante para o seu crescimento e afirmação no regresso, em 2005, à Fortaleza do Guincho.

[Chef Antoine Westermann, consultor gastronómico, e chef executivo Vincent Farges, dois franceses no comando da cozinha da Fortaleza do Guincho (foto de divulgação)]

De toda a forma, o legado de Westermann (detentor de três estrelas graças ao restaurante Buerehiesel, em Estrasburgo) não foi esquecido, e continua a ser a base, mas hoje Farges tem crédito — e aval — para poder criar e inovar sem estar tão espartilhado por ele. 

A cozinha francesa, rigorosa e formal, de Westermann sempre teve seguidores fiéis na Fortaleza, mas o Guincho não é Estrasburgo ou Paris; nem Portugal é a França — só para dar uma ideia, a atribuição de uma estrela Michelin a um restaurante francês significa, em média, um acréscimo da facturação na ordem dos 25%.

Foram precisos anos para que no Guincho percebessem esta nuance fundamental, mas, comprovada a evidência, Farges pôde, finalmente, enveredar por uma cozinha de técnica irrepreensível francesa, mas mais leve e, cada vez mais, portuguesa.

Ganhar novos clientes, sem defraudar os que se tornaram habitués, não são favas contadas; requer ousadia, mas também uma boa dose de equilíbrio e bom senso — afinal, está também uma estrela Michelin em causa.

[Bastante entrosado com a realidade portuguesa, Vincent Farges tem sido determinante para introduzir na alta gastronomia do Guincho, de base francesa, sabores e texturas lusos (©paulo barata)]

Trabalhar com ingredientes portugueses ao nível da alta gastronomia não é tão fácil como pode parecer à primeira vista. Não porque não tenhamos matéria-prima para isso, mas porque não existe, como em França ou na Alemanha, mercados especializados e os produtores nacionais, por regra, não têm ainda o hábito de baterem à porta dos grandes restaurantes para dar a conhecer os seus produtos. 

Farges não esmoreceu e, cada vez mais seduzido pelo que tem descoberto por cá, vem desenvolvendo um trabalho de campo assinalável, criando a sua carteira de fornecedores — inclusive entre pescadores e mergulhadores, ele que também pratica pesca submarina — e assumindo o risco (calculado) de executar cartas que variam não só em função das estações, mas também (em menor escala) do que há no mercado.

[Os amuse-bouche, que antecedem as entradas e são compostos por shots e composições subtis, revelam desde logo a aposta de Farges nos produtos frescos e, se possível, portugueses (©paulo barata)]

E da cozinha passo à adega. Para muitos, sobretudo para quem leva a peito estas coisas, dois prazeres  indissociáveis.

Com mais de 800 rótulos, provenientes de todo o mundo, a adega da Fortaleza do Guincho tem fama — e pressuponho que o proveito — de ser uma referência nacional e internacional, como o comprova a atribuição, por quatro anos consecutivos entre 2007 e 2010, do Best Award of Excellence por, nada mais, nada menos, do que a "bíblia" do sector: a revista norte-americana Wine Spectator

[Sommélier Inácio Loureiro, eleito o melhor de Portugal, em 2010, por diversas revistas da especialidade (©paulo barata)]

Por cá, louros também não lhe faltam; em especial para Inácio Loureiro, sommélier da casa desde 2007, que foi eleito, em 2010, o melhor da sua categoria por diversas revistas da especialidade.

Por regra, fala-se menos dos escanções, mas num restaurante deste gabarito, a marca que imprime pode até ser discreta, mas não deve nunca passar despercebida ou ser indiferente. Cabe a ele harmonizar cada prato, se for esse o desejo do cliente, com um vinho diferente. 

Nas últimas degustações, nota-se uma aposta muito forte nos vinhos do Douro, o que, a julgar pelo que se lê e escuta aqui e ali, se tem revelado uma escolha certeira. 

Há quem ache — como Carlos Maribona, voltando ao crítico espanhol — a carta de vinhos da Fortaleza do Guincho muito cara, mas não há registo — pelo menos recente ou digno de nota — de alguém capaz de lhe encontrar uma falha ou lacuna imperdoáveis.

Posto isto, e porque não era suposto tornar este texto demasiado longo ou técnico — ou em conversa de "gastrochatos", para utilizar uma expressão mais divertida —, fica desde já prometido que o próximo, e derradeiro, post será para contar o meu último jantar no Guincho, onde me foi dada a oportunidade de degustar vários pratos da carta desta estação.

Acredito, porém, que todas estas linhas não foram em vão. Elas têm uma razão de ser. É que certas coisas — ou melhor, certos prazeres — ganham um outro sentido, e sabor, quando sabemos como se chegou até ali.

Estrada do Guincho, Cascais, tel. 214 870 491

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